sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Conceituação científica e legal aplicada à gestão de fauna no Brasil.


Por Deni Lineu Schwartz Filho - Biólogo


Do ponto de vista essencialmente técnico, científico e do senso comum, entende-se por fauna silvestre o conjunto de animais vivendo no meio ambiente, onde desempenham as suas funções ecológicas, não dependendo de cuidados humanos para sobreviver. Nesse caso, entende-se por meio ambiente os ecossistemas naturais ou alterados, localizados nas unidades de conservação ou nas áreas rurais, periurbanas ou urbanas. A fauna silvestre pode conter exemplares de espécies autóctones, ou seja, que têm a distribuição geográfica natural ocorrendo naquele bioma, ou espécies alóctones, cuja distribuição geográfica original ocorre em outro bioma.

Do ponto de vista legal o conceito técnico-científico foi contemplado corretamente na Lei 5.197/1967, que já em seu primeiro artigo conceitua fauna silvestre como: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais ...”. Ou seja, tal como na conceituação técnica, o conceito trazido pela Lei 5.197 refere-se especificamente aos ANIMAIS que estão fora do cativeiro, ou seja, que vivem de forma independente no meio ambiente. Neste caso, os exemplares de espécies que não ocorrem naturalmente no Brasil (espécies exóticas), quando estabelecidos no meio ambiente, também são considerados animais silvestres. Essa conceituação legal é também similar ao usualmente utilizado em países com legislações ambientais bem consolidadas como nos EUA, no Canadá, na Austrália e nos países da comunidade Europeia.

Já a Lei 9.605/1998, desvirtuou completamente o conceito técnico-científico de fauna silvestre ao definir que: “São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”. Ou seja, essa lei considera como silvestres os animais pertencentes às ESPÉCIES que têm o ciclo de vida ocorrendo no território brasileiro, que no caso se aplica somente às espécies nativas do Brasil. Neste caso, os exemplares de espécies que não ocorrem naturalmente no Brasil (espécies exóticas), não são considerados silvestres, mesmo quando estabeleceram populações autossuficientes no meio ambiente.

É nítida a diferença entres os conceitos definidos na Lei 5.197/67 e na Lei 9.605/98. A primeira refere-se a silvestres como os INDIVÍDUOS, que independente da espécie, vivem naturalmente no meio ambiente. Já a segunda lei, refere-se a silvestres como os exemplares pertencentes a ESPÉCIES com distribuição geográfica original ocorrendo dentro do território Brasileiro, não importando se esses exemplares vivem de forma autossuficiente no meio ambiente ou são mantidos fora do seu habitat natural (ex situ), dependendo de cuidados humanos para sobreviver.

Problemas para a gestão da fauna, trazidos pela Lei 9.605/98:

a)     Do ponto de vista biológico não existem espécies silvestres ou espécies domésticas, existem sim populações silvestres e populações domésticas de determinadas espécies. Como exemplo temos o cão e o lobo, que pertencem a mesma espécie biológica (Canis lupus). As populações domésticas da espécie abrangem as várias raças caninas e as populações silvestres são conhecidas como lobos. No Brasil temos a espécie Cairina moschata, cujas populações domésticas são conhecidas como patos-domésticos e as populações silvestres são conhecidas como patos-do-mato, sendo que as populações silvestres e domésticas usualmente se intercruzam. Ao introduzir o conceito errôneo de “espécie silvestre”, a Lei 9.605/98 dificulta o uso sustentável e a gestão dos recursos faunísticos, deturpando o estabelecido na Lei 5.197/1967, que visou inibir o uso extrativista (caça) e incentivar o uso sustentável (criação).
b)     Os animais que vivem ou que se originaram no meio ambiente (in situ) têm natureza jurídica diversa dos animais originários em criadouros autorizados (ex situ). A Lei 9.605/98 junta no mesmo balaio dois objetos com natureza jurídica distinta, criando uma séria distorção, onde um bem de uso difuso, tutelado coletivamente e tipicamente regido pela legislação ambiental, se confunde com um bem privado, tutelado pelo proprietário e regido majoritariamente pelo código civil (marginalmente pela legislação ambiental que veda tratamento cruel a qualquer tipo de animal).

Para fins práticos de gestão e na formulação de normativas de fauna, é altamente recomendável:

a)   Evitar o emprego dos termos “animais silvestres” ou “animais da fauna silvestre” para se referir aos animais, que independente da espécie, nasceram em condição ex situ, e que, portanto, dependem de cuidados humanos para sobreviver. Definitivamente não são exemplares silvestres. Esses animais devem ser referidos como “animais da fauna nativa nascidos em empreendimentos autorizados”.
b)   Evitar o emprego de termos como criação ou comercialização de “animais silvestres” ou “animais da fauna silvestre”, mesmo quando se referir às espécies da fauna brasileira, pois os exemplares oriundos do meio ambiente, em tese, não podem ser comercializados nem mantidos como animais de estimação. Também neste caso pode-se utilizar os termos “criação ou comercialização de animais da fauna nativa...”.
c)    Evitar o emprego do termo “espécie silvestre”, pois do ponto de vista biológico não existem espécies silvestres. Existem sim populações silvestres e populações domésticas de determinada espécie. Usar preferencialmente os termos: “espécie nativa”, “espécie exótica” e “espécie doméstica”.
d)   Jamais utilizar o termo “espécie silvestre exótica”, pois além do erro conceitual do ponto de vista biológico, esse termo é frontalmente contrário ao conceito constante na Lei 9.605/98.

Recomendamos que para fins práticos de gestão e na formulação de normativas de fauna, sempre que possível, se utilizem termos que não confrontem a legislação brasileira e ao mesmo tempo mantenham significado científico e técnico preciso, tais como:

a)   Fauna nativa: O conjunto de espécies cuja distribuição geográfica original inclui o território brasileiro e suas águas jurisdicionadas. Sinônimo de fauna brasileira ou de fauna indígena.
b)   Fauna exótica: O conjunto de espécies cuja distribuição geográfica original não inclui o território brasileiro ou suas águas jurisdicionadas. Sinônimo de fauna alienígena.
c)    Fauna doméstica: O conjunto de espécies cujo processo de evolução foi influenciado ou induzido pelo homem através da seleção de caracteres desejáveis ou pelo melhoramento genético. Para fins de gestão, essas espécies são consideradas oficialmente domésticas. São espécies que podem conter populações selvagens, mas onde a maioria dos indivíduos dependem de cuidados humanos.
d)   Animal silvestre: Exemplar que vive no habitat e bioma natural de sua espécie, sem depender de cuidados humanos ou que vive sob cuidados humanos, mas é originário do meio ambiente.
e)   Animal asselvajado: Exemplar de espécie considerada doméstica, que se adaptou a viver no meio ambiente, desempenhando as funções ecológicas fora do bioma de origem da espécie e totalmente independente de cuidados humanos. Sinônimo de animal alçado.

Publicação original datada de 30 de abril de 2019, disponível em: